Tinha uma pedra no meio do caminho…

Tinha uma pedra no meio do caminho…

Você já parou para observar os espaços públicos da sua cidade? Percebeu bancos com divisórias, pedras colocadas sob viadutos e estacas de ferro na fachada de estabelecimentos? Esses exemplos são considerados parte de um conceito que define elementos urbanos criados para evitar o uso público de determinados espaços e segregar indivíduos, especialmente pessoas em situação de rua.
Denominado como arquitetura hostil, o termo se popularizou em meados de 2014 após uma publicação no jornal britânico The Guardian para identificar elementos arquitetônicos considerados dispositivos “anti-humanos”. Grandes cidades brasileiras enfrentam o problema do aumento da arquitetura hostil. Recentemente, ganhou espaço nos noticiários brasileiros quando pedras foram instaladas, pela Prefeitura de São Paulo, embaixo de um viaduto na zona leste da cidade.
Desde então, o assunto vem sendo comentado pela mídia e também por especialistas e profissionais. A arquiteta urbanista Claudia Pires lembra uma situação semelhante quando blocos pontiagudos de concreto foram instalados debaixo de viadutos em Belo Horizonte.
Segundo ela, o objetivo era “impedir que população pobre, em situação de rua, utilizasse os baixios de viadutos. Este tipo de atitude pouco empática tem se espalhado pelos espaços públicos e trazido uma discussão sobre o impacto perverso dessas barreiras na vida das pessoas que estão em situação de rua”.
A especialista aponta que a sociedade atual ainda está distante da arquitetura e do urbanismo que promove qualidade de vida nas cidades e muda a vida das pessoas. Nesse sentido, Claudia faz um alerta para que as pessoas não confundam esse tipo de violência com arquitetura. “Quem cria estruturas como essas não são arquitetos urbanistas. Estas barreiras são produto da intolerância e da desigualdade social de um coletivo de seres humanos. Arquitetura não é isso”.
“A arquitetura prega espaços generosos, prega o direito à cidade que se satisfaz com a articulação das pessoas em torno dos espaços de vida. A hostilidade pregada com ações perversas como concertinas, cercas de arame farpado e outras barreiras violentas que desprezam a generosidade e a empatia, absolutamente, não é arquitetura: é barbárie”, completa.

Barreiras para o convívio
A arquitetura hostil é uma forma cruel de excluir pessoas em situação de rua e torna as cidades menos acolhedoras e habitáveis. Com grande repercussão negativa, a cidade de São Paulo protagonizou uma cena lamentável quando pedras foram instaladas pela Prefeitura embaixo de um viaduto.
O caso foi amplamente debatido e ganhou força com a ação do padre Júlio Lancellotti, que milita pelos direitos humanos, e é conhecido pelas ações de acolhimento às pessoas em situação de rua. Ao se deparar com as pedras pontiagudas, o religioso usou uma marreta para remover essas barreiras à ocupação humana. Assim, chamou atenção das autoridades em relação à hostilidade dessas estruturas nos espaços públicos.
Como resultado da atuação do padre Lancellotti – e até de recorrentes discursos do Papa Francisco, que recrimina esse tipo de arquitetura, por excluir os mais pobres – um projeto de lei sobre a questão já foi aprovado na Câmara dos Deputados. O PL 488/2022 proíbe o uso de arquitetura urbana de caráter hostil ao livre trânsito da população em situação de rua nos espaços de uso público.
A arquiteta urbanista Claudia Pires acredita que o projeto é um grande avanço no sentido de garantir estruturas mais amigáveis para todos. “Tenho grandes óbices a tratar os obstáculos urbanos como arquitetura. É hostil e uma violência colocar barreiras nos espaços públicos, quando deveríamos estar construindo maneiras de reduzir a desigualdade e acolhendo os mais pobres, os que precisam e estão à margem do direito à cidade”, pontua.

Soluções

De acordo com a especialista, as administrações municipais utilizam, de forma geral, muito mal a arquitetura. Os 5.770 municípios brasileiros poderiam aproveitar a bagagem técnica dos profissionais e investir em ações que contribuam com cidades bonitas, atraentes e, ao mesmo tempo, acolhedoras.
“Infelizmente, percebemos que o conhecimento do arquiteto não é aproveitado devidamente para a implantação de políticas públicas de qualidade, tendo em vista melhorias dos espaços públicos e até mesmo dos privados quando o assunto é o direito à moradia”, lamenta.

Ela ressalta que, geralmente, nas campanhas de governo é possível verificar propostas relacionadas ao tema, mas “isso não se traduz em soluções de qualidade que resultem da intervenção do arquiteto, do exercício intelectual da projetação e da prospecção de determinada ideia. Então, reforço que as cidades usam pouco esse profissional. E, quando passarem a usar mais esse profissional, nós teremos cidades com mais qualidade”.
Como solução, Pires acredita ser necessário combater com veemência o que chama de “especulação predatória da cidade”, considerando que, muitas vezes, o poder econômico se sobrepõe ao bem-estar de todos. “Atualmente, essa é uma discussão central das cidades, baseada na Constituição Federal e no Estatuto das Cidades, no sentido de combater a desigualdade no uso da cidade, mas infelizmente a sociedade brasileira ainda não abraçou essa ideia”, pondera.
“Então, há uma sensação de naturalidade quando algumas áreas são precárias e outras áreas recebem investimentos, não para poder fazer a felicidade de todos da cidade, mas para a riqueza de alguns”, conclui.

Por Natália Rosa

VivaOnline

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